Muelle interior en el puerto de Viana do Castelo. Allí está impertérrito ante el paso del tiempo el que fue buque hospital para atender las necesidades de la otrora importante flota pesquera portuguesa. Eran otros tiempos, claro está... Hoy, el barco que fue hospital, recuperado, está convertido en Museo flotante, por el que pasan miles de personas cada año y se ha convertido en todo un símbolo de Viana do Castelo. Para algo fue construido -el actual "Gil Eannes"-, allá por los años 50 del siglo pasado, en los astilleros navales de la capital del Alto Minho.

A história do Gil Eannes é, como a do Gonçalo da Ilustre Casa de Ramires, uma boa fatia da história de Portugal mas vista de Viana do Castelo.

Tudo começou com um povo de marinheiros que se habituou, desde que D. Dinis fez um tratado com o rei Inglaterra, a comer e a gostar de bacalhau. Ora, como o consumo crescia, houve um vianense que resolveu procurar noutras paragens o poiso do "fiel amigo". E, com a descoberta de Fagundes, que assim se chamava o ousado vianense, o "amigo" tornou a sua presença ainda mais "fiel" à nossa mesa. Mas os portugueses andavam agora ocupados com os açúcares, a Guerra da Restauração, o ouro e os diamantes, com as Índias, as Áfricas e os Brasis...
 
Quando isto falhou, passaram a vender vinho fino e madeira... E, se continuavam a comer bacalhau, era à "pérfida AIbion" que o compravam.

Até que, na reconstrução nacional por que em boa parte passou o fim do século XIX, surgiram capitalistas suficientemente empreendedores para armar navios destinados a pescar aquilo que se tomou um hábito alimentar insubstituível dos portugueses. O que também tornara o investimento por demais seguro: a mão de obra era barata e o consumo garantido.

Mas também as condições de trabalho eram péssimas (diríamos hoje desumanas). Pobres e mal alimentados, suportando um frio glacial a bordo dos lugres e dos dóris, os homens padeciam de doenças dos aparelhos digestivo e respiratório, furunculoses e reumatismo. Como a safra era de cinco meses, os homens, além da falta de carinho das famílias, suportavam a doença meses a fio. E, se sobrevinha uma apendicite ou um acidente cardio-vascular... Tantos lá ficaram no mar frio onde tinham ido grangear o sustento dos filhos!...

Mas, entretanto, fez-se a República e os políticos passaram a lutar afanosamente pelo reconhecimento das monarquias europeias; mas nem sequer tinham conseguido cá dentro uma estabilidade que os recomendasse. Surge entretanto a Grande Guerra. E Afonso Costa e Norton de Matos, e todos dum modo geral, anseiam, diligenciam, pedem para a entrar na guerra ao lado do Reino Unido, da República Francesa, e do Império Russo, contra o II Reich e o Império o Austro-Húngaro: assim, a par, como um aliado ou um inimigo de respeito. E a oportunidade surgiu em 1916, quando os Aliados se encontravam em dificuldades e solicitaram o apoio português. O Governo mandou logo, a 23 de Fevereiro, apresar todos os navios alemães surtos no Tejo. E é aqui que começa a primeira parte da história do Gil Eannes.

 

O velho Gil Eannes

 

Chamava-se Lahneck e pertencia à companhia alemã "Deutsche Dampfschiffarts GeselIschaft Hansa". Tinha a capacidade para 2000 toneladas de carga e para navegar a 10 a 11 nós, media 84.79 m de comprimento e dispunha de um potente motor de 2000 hp. Foi um dos navios alemães requisitados pelo Governo em 23 de Fevereiro, em consequência do que a Alemanha nos declarou guerra a 9 de Março. Dias depois, era rebaptizado. Foi-lhe posto o nome dum daqueles homens que revolucionaram a história e que só sabemos que era algarvio e se chamava Gil Eanes. Mas foi ele que, numa simples barca, ousou desafiar os medos medievais e passar além do Bojador. E, do lugar aonde "passou além da dor" como diz o Poeta, apareceu ao Infante, não com uma espada sangrando nem com um grupo de cativos, mas com um ramo de flores, que os portugueses dedicaram à Padroeira de África e se ficaram chamando "rosas de Santa Maria". Foi "Gil Eannes" que este alemão aportuguesado se passou agora a chamar.

 

Serviu inicialmente para transporte de tropas para a Guerra que o fez português; foi depois fretado para os Transportes Marítimos, tendo servido na carreira dos Açores.


Decidiram mais tarde adaptá-lo a navio de assistência à pesca nos bancos da Terra Nova. Na Holanda recebeu as modificações necessárias, e a 16 de Maio de 1927 partia, enfim, para a Terra Nova, donde regressava a Lisboa em 14 de Novembro.

Estávamos, porém, já sob novo regime: o da Revolução do 28 de Maio, donde sairia o Estado Novo. Ora, não obstante a situação de infra-humanidade em que viviam e trabalhavam os nossos pescadores nos bancos da Terra Nova, as prioridades eram outras. E o Gil Eannes foi empregue no transporte de presos. Só em 1937 voltava a partir para a Terra Nova.


Mas a situação dos nossos pescadores era aflitiva. As doenças e mortes pairavam como mal permanente. Os portugueses eram até, por isso, alvo das maiores atenções por parte da população de St John's e dos pescadores esquimós que nutriam pelos nossos compatriotas uma grande solidariedade, em grande parte por compaixão. Ao mesmo tempo, o regime apoiava os armadores no sentido de incrementar a pesca do bacalhau nos bancos da Terra Nova e já também da Gronelândia, a fim de nos tomar pelo menos auto-suficientes num produto de intensa procura no espectro do consumo nacional. Foi então que o Gil Eannes, integrado na Marinha de Guerra, passou a dar apoio regular aos nossos pescadores do bacalhau, até 1941. Foi, depois disso, desarmado, em 1942, data em que foi entregue à Sociedade Nacional de Armadores do Bacalhau, a cujo serviço efectuou 27 viagens, 14 das quais de comércio e assistência. Quando a prestava, fornecia à nossa frota bacalhoeira água, óleo, carvão, isco, sal e alimentos. Possuía a bordo um serviço médico, transportava correio e expedia e recebia telegramas.

 

Entretanto, com a viragem do meio século, Portugal beneficiava da crise das economias europeias do após-guerra e, muito embora não tenha entrado na II Guerra Mundial, também beneficiava dos subsídios para reconstrução nacional e entrava na O.C.D.E. Ora, o regime, pela via corporativa, desenvolvia uma política social de assistência voltada para os problemas dos trabalhadores e orientando-se pela doutrina social da Igreja que dizia professar.


Foi por isso que, por esforços conjugados do Ministério da Marinha e do Grémio dos Armadores dos Navios da Pesca do Bacalhau, se decidiu substituir o velho Gil Eannes, ronceiro, esclerosado e sempre vestido de empréstimo nas roupas de navio de assistência, por um navio hospital dotado de outros meios, inclusivamente médicos, de assistência, com enfermarias, sala de tratamentos, gabinete de radiologia, bloco operatório, capela, e até salas de lazer, para prestar uma assistência médica compatível com a dignidade humana dos nossos pescadores do bacalhau.

 

Integra-se também nesta onda de recuperação nacional o desenvolvimento dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Surgiram eles da conjugação de dois factores: a existência em Viana do Castelo dum porto de mar moderno e desaproveitado e o dinamismo da Empresa de Pesca de Viana, fundada em 1925, que soube capitalizar em seu proveito uma tradição local ligada a algumas pequenas empresas que remontavam ao princípio do nosso século. Tinha ela armado já alguns navios que construíu fora. E foi a visão empresarial de João Alves Cerqueira que resolveu fundar uns estaleiros com vista ao aproveitamento do porto vianense e duma mão de obra que, por bisonha, teria de ser necessariamente barata. O corpo social da empresa era, por isso, em grande parte integrado por técnicos da C.U.F. Mas, construídos os primeiros arrastões, novas encomendas não surgiam, e os erros de gestão acumulavam-se, tendo ficado proverbial como sinónimo de gastos não orçamentados a "Obra 10". Foi então que Jacques de Lacerda, à data administrador da Parry & Son e muito bem relacionado com o então Ministro da Marinha, passou a gerir, a partir de 1950, os Estaleiros Navais de Viana do Castelo, como representante do seu maior accionista.


O Navio Hospital "Misericórdia do Mar"

 

E foi também então que começou a segunda parte da história do nosso navio. Era agora um robusto navio hospital de 2274 tdw, 98.450 m de comprimento, 5.490 m de calado, velocidade de 12.5 nós e capacidade para 72 tripulantes, 6 passageiros e 74 doentes. E, o que era uma inovação na época, dispunha de câmaras frigoríficas para fornecimento de alimentos frescos. Com efeito, todos sabemos, e Os Lusíadas disso fazem um eco dramático, que a sua falta é causa directa do escorbuto, doença de que sofria a "frota branca" dos nossos lugres veleiros da Terra Nova. Uma das missões do velho Gil tinha sido, por isso, a de adquirir animais em terra para abate destinado ao consumo alimentar. Com tantos bois, porcos e galinhas a bordo, chamava-lhe o humor dos nossos pescadores a "Arca de Noé". Agora, com os meios de frio de que este novo navio era dotado, podia haver carne fresca diariamente e sem dependência directa de terra. Foi a obra nº 15 dos estaleiros vianenses, entregue em 1955 ao Grémio dos Armadores de Navios da Pesca do Bacalhau.

A vida a bordo era difícil. Os momentos de lazer, nas poucas horas que sobravam entre o sono, a pesca e o amanho do bacalhau, passavam-se vendo filmes e jogando cartas. Uma rara distracção era uma visita a St John's, onde as populações terranovenses continuavam a acarinhar estes sacrificados do mar que eram os nossos pescadores. Mas agora a frota dispunha dum capelão para assistência religiosa, um desabafo humano, ou para dirimir pequenos conflitos. É o que em primeira análise podemos colher de dois diários de bordo do capelão que mão amiga me fez chegar à mesa de trabalho. Também deles poderemos respigar, quando se lhes fizer uma edição crítica, casos de contrabando, as boas relações com os esquimós, e também o afundamento de navios para beneficiar do seguro, e tantos casos humanos, que, por o serem, têm sempre o anverso do sacrifício e da abnegação, e escondem por vezes um reverso menos de louvar.

 

Nos bancos da Terra Nova, o Gil Eannes, além das funções de navio hospital que lhe mereceu a alcunha de "Misericórdia do Mar", distribuía correio, procedia a abastecimentos em víveres, combustível, apetrechos de pesca e isco,


foi rebocador, salva-vidas e quebra gelo: quando um dóri ficava encalhado no gelo, o Gil ia ao local, quebrando o gelo com o seu casco de aço, e abria o sulco de retomo ao barco sinistrado. (...) desempenhou, naturalmente, também as funções de navio capitania, na tradição das "Naus Capitainas" de quinhentos.

Mas ao fim de vinte anos de trabalho, o Gil ficou velhinho. Velhinho e gasto. Ainda pôde ver com alegria o restabelecimento da democracia que o seu antecessor conhecera. Só que, com as novas condições surgidas, também agora se regressava ao sistema de consumir bacalhau comprado, à Islândia e à Noruega. (...), sabemos que a sua última viagem à Terra Nova foi em 1973. Mas neste ano fez uma viagem diplomática ao Brasil. Depois, o Gil deixou de ser útil. Ainda foi à Noruega para de lá trazer bacalhau fresco nas suas instalações de frio e trouxe refugiados de Angola. Mas, depois, foi sendo empurrado, como um fardo inútil, de cais para cais lisboeta, até se anichar no Cais da Rocha, donde o venderam para abate à empresa Baptista & Irmãos, Lda. É a Alhos Vedros que o vamos buscar para o tratar e reabilitar. 

 

Alberto A. Abreu

Fotos : Araújo Maceira

Apoio : Fundação Gil Eannes,


(Retirado da brochura original dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo e pelo Grémio dos

Armadores de Navios da Pesca do Bacalhau de 1955 e constante na reedição "Gil Eannes"

da Câmara Municipal de Viana do Castelo e da Comissão Especial Pró Gil Eannes de 1997)

 

Resgatado ao sucateiro pela então Comissão Pró Gil Eannes, transformada posteriormente em Fundação Gil Eannes, actual proprietária do navio que transforma a embarcação em museu flutuante, abrindo as portas ao público em Agosto de 1998.